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sexta-feira, 9 de abril de 2010

Os vendedores de ilusões

Por Washington Araújo em 6/4/2010
A distância entre o político populista e o apresentador de TV populista é quase inexistente. O primeiro, em busca de votos a cada dois anos, não pensa duas vezes antes de prometer algo que agrade seu eleitor-cliente. O segundo, se não diariamente ao menos semanalmente, não se arrisca a apresentar programa que deixe de ter como atração principal o sorteio de casa nova ou de carro novo.
O universo-alvo de um e de outro é o mesmo: pessoas sofridas, morando precariamente ou dirigindo veículos caindo aos pedaços. O trabalho do político populista é vender ilusões para todos: emprego, saúde e educação acessível a todos, sem exceção. O trabalho do apresentador populista é realizar o "sonho" de um indivíduo, uma família. E vender a ilusão de seus telespectadores que isso poderia acontecer com eles também.
Luciano Huck (Rede Globo) e Gugu Liberato (Rede Record) lideram grandes audiências com essas tais atrações. E chegam a ser caricatos ao carregar nas falas palavras de falsa compaixão pela dor do "contemplado". Fazem superprodução com o drama alheio e não estão alheios ao fato de que emoção barata impede a audiência de, com olhos marejados e corações enternecidos, mudar de canal para ver o que o concorrente está apresentando.
Exploram a miséria alheia como dono de cassino explora a jogatina. E querem ficar no imaginário da patuléia como heróis do nosso tempo, pessoas altruístas, cheias de bondade, primor do caráter humano, solidariedade até não mais poder e por aí vai. Eles desejam personificar a santa baiana, Irmã Dulce. No caso, desejam se converter na Irmã Dulce do marketing, despudorado e desenfreado. Algo impensado e por isso mesmo verossímil.
O "prato preferido" dos brasileirosNo caso do Programa do Gugu, o apresentador não se faz de rogado e oferece a quem interessar possa a receita para ser escolhido a participar do quadro "Sonhar mais um sonho": a pessoa pode sonhar o que quiser, mas é muito importante observar algumas providências que poderão facilitar a escolha do pedido pela equipe. E quais seriam as tais providências? Vamos lá: o interessado deve sempre fazer um filminho daquilo que quer mudar. Por exemplo: sua casa, seu comércio, seu veículo ou até mesmo a própria pessoa contando a sua história. Depois é só colocar o filme no YouTube ou enviar um DVD gravado para a produção, pelo correio. Imagino que Gugu deve dispor de volumoso acervo de histórias reais de gente querendo melhorar o padrão de vida. Destaco que o tópico em seu sítio com o título "Como participar do quadro `Sonhar mais um sonho´" recebeu nada menos que 3.604 comentários!
No caso do 
Caldeirão do Huck o discurso não é muito diferente. Diz que se o interessado tem um carro "caindo aos pedaços" e não tem condições financeiras para reformá-lo, pode tentar a sorte enviando sua história para o quadro do Caldeirão. E a receita é mais enxuta e clara: "Primeiramente escreva um texto com maior número de detalhes possíveis, não invente o que não existe e fique de olho no português da história. Separe algumas fotos do carro, mostrando seu verdadeiro estado de conservação e umas fotos..."
O nível de indigência mental em que se encontra nossa "caixa mágica", tão unificadora e cultivadora nos seus primórdios, só rivaliza com a ausência de programas que tragam relevo aos valores humanos. Nossa TV se transforma rapidamente num depósito de programas populistas capazes apenas de gerar audiências, mas incapazes de gerar conhecimento e aprendizagem. O pouco rigor com que a informação é apresentada na televisão mistura-se com a falta de programas culturais para dar espaço ao "prato preferido" dos brasileiros: as telenovelas. E, nos últimos dez anos, os infames 
reality shows. Não tenho receio de afirmar que atualmente a televisão brasileira é um misto de telenovelas com telejornais populistas, programas de variedades que oferecem sempre mais do mesmo e atrações comoA Fazenda e o Big Brother Brasil. Abundância, opulência e desperdícioVêm-me à mente um filme instigante que me fez repensar a condição humana a partir da tela grande do cinema e que terminou vencendo o Oscar 2009:Quem quer ser milionário? O protagonista é legítimo representante de quase 2/3 da população mundial: jovem favelado sobrevivendo em país onde a miséria é pintada diariamente com todas as suas cores e matizes, a Índia. Se existisse uma enquete para mudar o nome do nosso planeta não hesitaria em propor que se chamasse Favela. Planeta Favela seria a forma encontrada para homenagear o imenso contingente populacional que teima em sobreviver em favelas que vão da China à Nigéria, de Salvador a Darfur, de Calcutá a La Paz.
Poucos entendem que a favela é muito mais que uma área habitacional. Ela é o melhor retrato do nosso fracasso enquanto processo civilizatório. E é a pedra tumular da falência das diversas ideologias que, por breves períodos de tempo, cativaram a imaginação e o idealismo humanos. Desemprego, subemprego, trabalho informal, biscates, mendicância, prostituição, doenças, fome, violência, crime; tal é a realidade social dessa população. Esgoto a céu aberto, lixo, imundície, cadáveres em decomposição, ratos e moscas formam o cenário onde sua realidade material busca expressão. No filme ficamos sabendo que um bilhão de pessoas vive literalmente entre dejetos humanos e há uma cena em que o protagonista do filme ilustra graficamente o que quer dizer "viver entre dejetos".
Trabalhar a questão da miséria material é algo que requer preparo, conhecimento, determinação e boa dose de sinceras intenções. Lançando o olhar para além da população que vive em favelas, deparamos com numerosas camadas de pobres, remediados, trabalhadores explorados formalmente, que compõem a imensa maioria da humanidade e para quem assegurar a simples sobrevivência já é um desafio cotidiano descomunal.
O que choca e faz aflorar em nós o mais elevado nível de perplexidade é sermos sabedores que esta realidade convive lado a lado com ilhas de prosperidade, ilhas em que a abundância de recursos e a capacidade produtiva disponível no planeta estão sempre acessíveis. Abundância apenas, não e sim, opulência e desperdício que fariam corar de inveja os Césares da Roma Imperial e os Faraós do Antigo Egito.
Salário mensal de seis dígitosHá muito que a TV deixou de ser mero veículo de comunicação. É, de longe, instrumento de educação e entretenimento de novas gerações. Funciona como babá eletrônica para boa parte da classe trabalhadora do país entretendo as crianças enquanto seus pais estão no trabalho. E é diante da tela da TV que as crianças recebem boa parte das lições que irão nos anos à frente moldar seu caráter, definir sua personalidade. Não precisamos ir muito longe para ver que a televisão é grandemente responsável pela erotização precoce das crianças e, igualmente grave e danoso, é diretamente responsável pela formação de levas de novos consumidores em detrimento de novos cidadãos e cidadãs.
Quem não recorda do papel da televisão como veículo por excelência a ditar modas e modismos? Não precisamos recuar muito no tempo para vermos mentalmente as crianças ensaiando passos da lambada, da dança do créu, dança do caranguejo, dança da boquinha da garrafa e chegando ao atual momento
rebolation de ser.
O uso de crianças como chamariz para vender de carros, seguros de vida, iogurtes, refrigerantes, sandálias, roupas etc. é uma constante no mercado brasileiro da publicidade. E as crianças que se destacam na área da propaganda por sua vivacidade, improviso, sagacidade e adaptação ao meio televisivo, logo são cooptadas para trabalhar em programas de auditório (como Maísa no SBT) ou personagem de novela (como Klara Castanho, na Globo). Neste último caso, a graciosa atriz-mirim de
Viver a Vida desempenha papel de vilã, isso mesmo v-i-l-ã, e tal ocorrência não tem gerado qualquer repúdio por parte das autoridades e instituições que, por força de lei, deveriam zelar por sua integridade física, moral e psicológica. É que para alguns o cinismo é visto como ossos do ofício.
O mundo do espetáculo é um mundo idealizado, limpo, fortemente iluminado, embalado para presente com aquele sorriso artificial e monstruoso dos apresentadores de TV. Os programas de variedade apostam todas as fichas na fantasia de que é possível realidade desde que a sorte sopre a seu favor e, principalmente, se a sorte tiver a assinatura de Gugu Liberato ou Luciano Huck. É que há toda a dissimulação necessária à venda da imagem de bons seres humanos – dos apresentadores – que demonstram que a vida só vale a pena se for para realizar os sonhos de consumo e de vida confortável proporcionada por bens materiais palpáveis para pessoas pobres e desvalidas na longa estrada da vida.
Se um gasta R$ 50 mil com a reforma de uma casa em estado de conservação deplorável não fica subentendido que o mesmo apresentador conseguirá 5 ou 12 pontos de audiência e com isso poderá manter seu salário mensal na casa dos seis dígitos – R$ 1 milhão – além do dobro ou do triplo deste valor a ser contabilizado através da inserção de chamadas comerciais para este ou aquele material de construção, eletrodoméstico, marca de automóvel, empresa de construção.
O seleto rol de benfeitoresA cada lágrima de felicidade derramada ante as câmaras que atuam no set de filmagem da Globo ou da Record, alguns pontos de audiência são aferidos e com estes a certeza da manutenção do programa na grade da emissora. O que é de todo lamentável é testemunharmos, semana a semana, a manipulação das emoções humanas, de suas misérias e sofrimentos, em troca de dinheiro graúdo. É este aporte de recursos financeiros que mantém cada vez mais rentável o negócio chamado "programa de auditório". Eles são as vitrines preferidas por certa categoria de anunciantes. E enquanto existirem pessoas necessitadas de uma casa confortável, de um carro todo transado; enquanto houver gente que se emocione com a felicidade destes ao ver seus sonhos tornando-se realidade, não estaremos livres de apresentadores como Luciano Huck e Gugu Liberato, de longe os mais bem-sucedidos na arte de arrancar sorrisos e olhares de gratidão de pessoas simples e necessitadas, que em troca da casa ou do carro expõem, sem qualquer pudor, seu drama para todo o país.
Aproveito este espaço para oferecer como matéria de reflexão aos dois apresentadores um ditado muito conhecido no Brasil profundo: "O que uma mão dá a outra não precisa saber". Caso tenham dificuldade de entender o "espírito", a "moral" do ditado popular, lá vai:


Se você faz um ato de bondade, não precisa espalhar para todo mundo, não precisa todo mundo saber que você é uma pessoa generosa e bondosa, ou seja, quando você faz o bem, faz por compaixão, pela vontade de ajudar o próximo, e não para tirar algum proveito ou status da situação perante a sociedade. Sendo assim caso você ajude alguém, não precisa colocar essa nota no jornal, guarde para você, afinal não existe recompensa maior que a gratidão da pessoa a qual você ajudou de alguma forma.Sugiro também a leitura de biografias de gente como Oskar Schindler, Albert Schweitzer, Amélia Collins, Irmã Dulce. Eles ajudaram as pessoas pelos motivos corretos. E por isso integram aquele seleto rol de benfeitores não de seus amigos, e sim, da inteira humanidade.

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