Mentiras constantes: Rapaz pego na mentira coloca a mão no rosto, em sinal de grande vergonha em mitomania compulsiva.
Solange Celere
O pai era maquinista, mas J.O. fazia questão de repetir a história que ouvira desde cedo, da mãe: para todo mundo, era engenheiro da rede ferroviária.
O sogro era diretor de uma empresa de grande porte, mas para os amigos, colocava-o como o dono.
Formou-se em História pela faculdade privada Osvaldo Cruz, mas não economizava detalhes para convencer a todos, inclusive a mulher, que era graduado pela USP, mestre e doutor. Diretor por muitos anos do Palmeiras, procurava ter o confortável padrão de vida das pessoas que o cercavam.
A história de mentiras e fabulações de J.O. terminou há três anos. Atolado em dívidas, morreu dependente do álcool a 10 dias da data em que completaria o 54° aniversário: por ironia, um 1° de abril.
A mitomania – compulsão mórbida pela mentira – está longe de figurar apenas no universo infantil, nas lorotas de pescador ou em clássicos contos como o de Pinóquio. A necessidade descontrolada em freqüentemente fazer uso dela é estudada por segmentos da psiquiatria como um transtorno específico de personalidade que merece atenção e cuidados.
No caso de J.O., quem relata sua destreza em inventar fatos e a acreditar neles é a cunhada. M.A.P. é relações públicas e ex-professora universitária da PUC-Campinas. Irmã de S., que foi casada com J.O. por 25 anos. “O caso dele é curioso, pois sua mãe tinha o mesmo perfil e, agora, o filho de 30 anos também reproduz traços da personalidade do pai e exagera até em assuntos banais. Toda a minha família sofreu com a situação”, conta. Hilda Morana, médica perita do Instituto de Medicina e de Criminologia do Estado de São Paulo (Imesc) há 17 anos, traduz a mitomania como propensão a contar histórias e mentiras fantásticas, frutos da imaginação, com a consciência de que o relato é falso. “Em geral, essa manifestação deve-se à profunda necessidade de apreço ou atenção. A mitomania é um sintoma que está a meio caminho entre o delírio e a imaginação patológica”.
Mas há diferenças entre o mitômano, o fabulador e um mentiroso circunstancial. “É preciso compreender a personalidade psicopata antes de tudo, pois a mitomania é uma ferramenta dela. O mitômano usa a mentira de forma consciente para ludibriar pessoas, tirar vantagens. A amoralidade e a insensibilidade são suas marcas registradas. A mentira vira um estilo de vida. Vemos isso com bastante freqüência na política, na figura de líderes mundiais, alpinistas populistas”, ilustra o psiquiatra Albert Zeitone.
O fabulador, segundo Luis Falivene, estudioso da mente há 35 anos,usa a mentira para autopromoção, como forma de valorizar-se. É o sujeito que diz que tem uma Mercedes na garagem e anda de carro popular. “Já o mentiroso episódico é aquele que mente que está se separando da esposa só para seduzir uma moça. Espontaneamente ou ao ser descoberto, admite a verdade”, compara.
O mitômano não admite a mentira nunca. Também não se abala ao tê-la descoberta. Ao contrário, quando demonstra abalar-se não passa de mera interpretação para enganar ainda mais as pessoas.
A estudante de Gastronomia M.A.C, de 25 anos, tem uma amiga de infância que mente em todas as circunstâncias. “Ela conta histórias elaboradas para conseguir que a loja troque uma roupa que já usou ou para aplicar pequenos golpes na mãe e no irmão. Mente até sobre a cor da tinta de cabelo que usa”, admira-se a moça, que já se afastou da colega várias vezes por conta de seu comportamento.
O advogado V.L.F. separou-se da mulher após pouco mais de um ano de casamento ao constatar que tanto a esposa quanto os sogros esforçavam-se para viver de fantasias. “Ela sustentava mentiras mesmo diante de documentos que comprovavam a verdade. Não é possível manter um relacionamento cujas bases sejam falsas”, conclui.
Jornalista apaixonado pelo futebol, o falecido João Saldanha, gaúcho de temperamento difícil, não perdia a chance de contar as aventuras que dizia ter vivido. Seja ter assistido a todas as Copas do Mundo, seja cobrir a guerra da Coréia, o desembarque das tropas aliadas na Normandia, durante a Segunda Guerra, ou a Grande Marcha de Mao Tse-Tung.
O repórter Jayson Blair, de 27 anos, enganou leitores e colegas do The New York Times com textos e entrevistas falsos. Inventou situações, copiou notícias de jornais concorrentes e sobreviveu com esta postura por quatro anos, até ser descoberto e se demitir no ano passado. Desmoralizou o jornal e a si próprio.
A Internet virou uma das principais armas da modernidade nas mãos de mitômanos ou simples aventureiros da mentira. É possível mentir sem ser descoberto, plagiar e até aplicar pequenos e grandes golpes. O anonimato e a possibilidade de alterar a realidade favorecem o mentiroso, seja o vovô que se passa por garotão com ajuda de uma fotomontagem ou o espertinho que consegue marcar encontros e arrancar dinheiro e viagens de suas vítimas. São os mentirosos cibernéticos.
Especialistas apontam que há sociedades em que a mentira é mais tolerada ou até incentivada em alguns casos. Em algumas culturas árabes o exagero da verdade é absolutamente aceitável para o bem dos negócios
Há as mentiras do cotidiano das quais ninguém está livre de contar ou de ouvir. Um estudo científico norte-americano, desenvolvido pelo psicólogo Gerald Jellison, da Universidade do Sul da Califórnia, assegura que acessamos cerca de 200 mentiras por dia, seja ouvindo, lendo ou assistindo. Exclua-se aí o período eleitoral, quando, segundo ele, a quantidade é duplicada. Jellison vai mais longe. Em geral, todos contamos entre uma e duas dúzias de mentiras diariamente, desde aquele comentário sobre o novo visual da colega de trabalho até a desculpa para não comparecer a um jantar de amigos. “São mentiras aceitáveis para a convivência, funcionam como apaziguadores sociais”, avalia Luis Falivene.
Já se estuda a influência genética sobre os mitômanos e outros distúrbios de personalidade. O que se sabe, seguramente, é que há fatores do ambiente familiar responsáveis por este tipo de conduta. Alguns psicanalistas acreditam que a resposta para o que leva pessoas a mentirem de maneira patológica pode estar em traumas da infância. É o caso de Mário Quilici, pesquisador do desenvolvimento infantil e de como os distúrbios do vínculo entre a criança e seus pais podem levar ao surgimento de patologias na medida que impedem o adequado desenvolvimento emocional. Outros falam em simples desvio de caráter.
Tratar o mentiroso é uma coisa difícil por diversas razões. A primeira delas é que raramente eles procuram ajuda, a não ser quando vão perder o cônjuge, o emprego ou algo importante. A segunda é que mentem justamente porque não querem se deparar com a própria insuficiência. Optam pela comodidade de viver sonhos, ainda que isso signifique a própria destruição ou a daqueles que estão em sua volta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário