Extraído do livro "História da Civilização", de Will Durant.
(...) Quando a civilização sumeriana chegou a certo ponto (2.300 a.C) seus poetas e historiadores procuraram reconstruir o passado da raça. Os primeiros compuseram histórias da Criação, um primitivo Éden e um terrível dilúvio que os engoliu como castigo dos pecados dum velho rei. (Cambridge Ancient History, I, 456). Esse dilúvio passou para a tradição judaica e tornou-se parte do credo cristão. (p.128). Em 1929, o prof. Wooley, escavando nas ruínas de Ur, descobriu em considerável profundidade uma camada aluvial de oito pés; isto, a crermos em sua interpretação, era o depósito de uma enchente do Eufrates que mais tarde evoluiu para o dilúvio. Abaixo dessa camada encontrou o remanescente duma cultura pré-diluviana, descrita pelos poetas como a Idade de Ouro. (p.129).
EGITO
(...)
Nas vizinhanças a Esfinge, meio leão, meio filósofo, crava as unhas na areia e olha parada para os efêmeros visitantes da planura eterna. É um monumento selvagem, como que preposto a assustar crianças. O corpo de leão desfecha em cabeça humana, de mandíbulas prognatas e olhar cruel; a civilização de que saiu aquilo ainda era muito bárbara. A Esfinge já esteve coberta pelas areias, pois Heródoto, que viu tanta coisa que já lá não existe, nem sequer a menciona. (p.149).
II. OS MESTRES CONSTRUTORES
I. A Descoberta do Egito
Champollion e a Pedra de Roseta
A reconstituição do Egito é um dos mais brilhantes capítulos da arqueologia. A Idade Média só conheceu o Egito como colônia romana e cristã; o Renascimento admitia que a Civilização tinha começado na Grécia; mesmo o Século das Luzes, embora inteligentemente se preocupasse com a Índia e a China, nada sabia do Egito além das Pirâmides. A egiptologia foi um foi um subproduto do imperialismo napoleônico. Quando o corso partiu para a expedição do Egito, levou consigo um grupo de engenheiros e desenhistas para o levantamento topográfico do terreno, e também alguns estudiosos absurdamente interessados na história antiga. Foram estes homens os primeiros reveladores dos templos de Luxor e Carnac; e a exaustiva Descrição do Egito (1809-13) que prepararam para a Academia Francesa constitui a primeira pedra dos estudos sistemáticos daquela esquecida civilização. (Cambridge Ancient History, I, 116; II, 100.).
Por muitos anos, entretanto, foram incapazes de ler as inscrições ainda existentes nas pedras. Um dos savants, Champollion, aplicou-se ao problema da decifração dos hieróglifos, e por fim encontrou um obelisco recoberto de inscrições egípcias, mas trazendo embaixo uma inscrição grega indicadora de que aquilo dizia respeito a Ptolomeu e Cleópatra. Deduzindo que dois hieróglifos muito repetidos, sempre marcados com uma insígnia real, eram os nomes de Ptolomeu e Cleópatra, conseguiu decifrar onze letras; foi a primeira demonstração de que o Egito tinha possuído um alfabeto. Em seguida o sábio aplicou esse alfabeto à grande laje que as tropas de Napoleão haviam encontrado perto de Roseta, uma das bocas do Nilo. Esta “Pedra de Roseta” continha uma inscrição em três línguas: em hieróglifos, em “demótico” – a escrita popular dos egípcios – e em grego. Com o conhecimento que tinha do grego e as onze letras do obelisco, Champollion, depois de vinte anos de trabalho, decifrou a inscrição inteira, e desse modo ressuscitou, na sua integridade, o velho alfabeto egípcio* – abrindo as portas para a reconstituição de todo um mundo perdido. Esse fato corresponde um dos picos da história da História. (Breasted, Ancient Times, 97, 455; Cambridge Ancient History, I, 117.).
* O sueco Akerblad em 1802 e o físico inglês Thomas Young e em 1814 contribuíram para essa decifração. (Ibid., 116.). (p.153-154).
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Não sabemos dos motivos que fizeram da Quarta Dinastia a mais importante do Egito, antes da Décima Oitava. Talvez a prosperidade da mineração no último reinado na Terceira, talvez a ascendência dos mercados egípcios no Mediterrâneo, talvez a brutal energia de Khufu (o “Quéops” de Heródoto), o primeiro faraó da Quarta Dinastia. Heródoto transmitiu-nos as tradições dos sacerdotes egípcios relativas a este construtor da primeira pirâmide de Gizé*:
“Disseram-me eles que no reinado de Rampsinitus houvera uma perfeita distribuição de justiça, e que todo o Egito nadava em prosperidade; mas que o seu sucessor Quéops se atolara em toda a sorte de infâmias e fechara todos os templos... e ordenara que todos os egípcios trabalhassem para ele. Uns eram mandados tirar pedras nas montanhas arábicas; outros, receber as pedras depois de transportadas pelo rio... E trabalharam cem mil homens ao mesmo tempo, cada um prestando três meses de serviço. Foi de dez anos o espaço de tempo em que o povo viveu assim, atormentado de serviço na abertura da estrada por onde levariam as pedras; um trabalho, na minha opinião, não menor que o do erguimento da Pirâmide.” (Heródoto, II, 124). (p.157-158).
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Por que razão ergueram esses homens as pirâmides? O propósito não era artístico, sim religioso; as pirâmides não passavam de túmulos, vindos em linha reta dos velhos montículos funerários. Aparentemente os faraós admitiam, como qualquer homem comum do tempo, que os corpos eram habitados por um duplo, ou Ka, que não morria com o fim da respiração; e que o Ka sobreviveria de modo mais completo se a carne fosse preservada contra a fome, a violência e a dissolução. Pela sua forma, altura e posição as pirâmides procuravam a estabilidade propiciatória da imortalidade; e, exceto nos cantos, tomavam a forma dum depósito naturalmente caído sobre a terra – a forma dum despejo de areia, por exemplo. Precisavam possuir permanência e força e por isso eram as pedras empilhadas com tamanha abundância, como se tomadas dali mesmo e não trazidas de centenas de milhas longe. Na pirâmide de Quéops contam-se dois e meio milhões de blocos, alguns do peso de 150 toneladas; (J. Capart, Lectures on Egyption Art, 98.) em média pesam duas toneladas e meia; cobrem 108.900 metros quadrados e erguem-se a 158 metros. O todo formava massa contínua; só se omitiam os blocos necessários para dar passagem à carcaça do faraó. Os guias levam os medrosos turistas, a se arrestarem de quatro pés, para dentro do cavernoso mausoléu, até o coração da pirâmide; lá, naquele silêncio absoluto, naquele escuro eterno, dormiam os ossos de Quéops e sua rainha. O sarcófago de mármore ainda está no lugar, mas quebrado e vazio. Nem aquelas pedras, nem todas as maldições dos deuses, conseguiram amedrontar os ladrões. (p.158-159).
Como o Ka era concebido à imagem do corpo, tinha de ser alimentado, vestido e servido, depois da morte física. Havia nalguns túmulos reais lavatórios para uso da alma; e um texto funerário exprime o receio de que de por falta de comida o Ka ingerisse os seus próprios excrementos. (Cambridge Ancient History, I, 335.) Suspeita-se que os costumes funerários egípcios entroncam nas primitivas inumações dos guerreiros com suas almas, ou nalguma instituição como o sutte dos hindus – o enterro das esposas e servos do morto, para que o servissem na outra vida. Como isso não conviesse às esposas e aos escravos, os pintores e escultores tiveram a idéia de traçar desenhos e fazer estatuetas figurativas desses ajudantes; e por meio de fórmulas mágicas, gravadas sobre as representações, elas se tornavam tão efetivas quanto os modelos. (...).
O meio de sossegar o Ka e assegurar-lhe vida longa não consistia apenas no enterro do cadáver em sarcófago de pedra; também o mumificavam. E se tornaram mestres na arte. Heródoto fala da arte do embalsamador egípcio:
“Primeiramente, extraíam os miolos pelas ventas, como um gancho de ferro, e o que não saíam assim era tirado com infusão de drogas. Depois, com uma pedra cortante, faziam uma abertura de lado e extraíam as entranhas; e tendo limpado o abdome, lavavam-no com vinho de palmeira, e o aspergiam com estudados perfumes. Enchiam depois a cavidade com pura mirra, cássia e outras essências, e costuravam o corte; e feito isso maceravam o defunto em natro durante setenta dias; não era legal exceder desse prazo. Ao fim dos setenta dias lavavam o corpo, enleavam-no em bandas de pano encerado e o empapavam de goma, que no Egito é usada em vez de cola. Em seguida punham o corpo numa caixa de madeira com a forma dum homem, fechavam-na e guardavam-na em câmara sepulcral, de pé, encostada à parede. (Heródoto, II, 86.). (p.160).
(...) Um dos primeiros faraós, Pepi II, governou o Egito durante 94 anos (2.738-2.644 a.C), o mais longo reinado da história. Por sua morte a anarquia e a dissolução irromperam; o controle escapou aos faraós, e os barões feudais passaram a dirigir autonomamente os “nomes”: esta alternação entre o poder centralizado e descentralizado é um dos ritmos cíclicos da história, como se o homem tanto se canse da excessiva ordem como da excessiva liberdade. Depois duma Idade Média de quatro séculos caóticos, um Carlos Magno egípcio apareceu, restaurou a ordem, mudou a capital de Mênfis para Tebas e sob o Noé de Amenemhet I inaugurou a Décima Segunda Dinastia, durante a qual todas as artes, exceto, talvez, a arquitetura, iriam alcançar um grau de excelência inigualado no Egito ou em qualquer outra parte. Numa velha inscrição Amenemhet nos fala assim:
“Fui eu quem cultivou o cereal e amou o deus das colheitas;
Ninguém no meu tempo padeceu fome ou sede;
O Nilo e todos os vales felicitavam-me;
Os homens viviam em paz dentro da minha obra, e falavam de mim.”
Sua recompensa foi uma conspiração entre os Talleyrands e Fouchés por ele postos nos mais altos cargos. O faraó os abateu com mão pesada, mas deixou para seu filho, um Polônio de Hamlet, um rolo de papiro cheio de admiráveis fórmulas de despotismo:
“Ouve com atenção o que te digo,
Para que venhas a ser rei da Terra...
Para que possas prosperar:
Endurece com todos os subordinados –
O povo só dá atenção a quem o aterroriza;
Não te aproximes de ninguém mal guardado.
Não te abras com um irmão,
Não reconheças um amigo...
Quando no sono, guarda para ti mesmo o teu coração,
Porque um homem não tem amigos no dia da desgraça.” (J. H. Breasted, Development of Religion and Thought in Ancient Egypt, 203.). (pg.161-162).
(…) Amenemhet III, grande administrador e construtor de canais, pôs fim ao poder dos barões e substitui-os por delegados de nomeação real. Treze anos após sua morte o Egito entrou em agitação com a disputa do trono por pretendentes rivais, e o Reino Médio terminou com dois séculos de desordem. Então os hicsos, um povo nômade da Ásia, invadem a terra desunida, queimam as cidades, arrasam os templos, esbanjam as riquezas acumuladas, destroem inúmeras obras de arte e por duzentos anos conseguem manter em sujeição o vale do Nilo. Eram os “Reis Pastores”. As antigas civilizações correspondiam a ilhas no oceano da barbárie; países prósperos rodeavam-se de povos caçadores e pastores, famintos, invejosos e belicosos; a qualquer momento as muralhas defensoras dessas civilizações podiam ser quebradas. Assim, os cassitas assaltaram a Babilônia, ao gauleses atacaram a Grécia e Roma, os hunos talaram a Itália, os mongóis derramaram-se sobre Pequim.
Breve, porém, os conquistadores engordaram e perderam as rédeas; os egípcios ergueram-se em luta de libertação, expulsaram os hicsos e estabeleceram a Décima Oitava Dinastia, cujos reis elevaram o Egito à maior riqueza e glória. (p.162).
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