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sexta-feira, 27 de maio de 2011

Roma de Fellini

Sinopse: Filme composto por três quadros fundamentais: 1. Na escola primária de Rimini, o professor conta histórias sobre a Roma mítica. 2. Nos anos 1940, o jovem Fellini chega a Roma antes da Segunda Guerra Mundial e descobre os seus teatros e bordéis. 3. Nos anos 1970, o cineasta Fellini faz um documentário sobre Roma, evocando sobretudo o seu lado invisível.


De tempos a tempos volto a Federico Fellini. Sempre que o cinema maisntream não me satisfaz - algo que infelizmente acontece com cada vez mais frequência - recupero este Roma em especial. Não sei se será o melhor filme do realizador italiano, que tanto influenciou a geração americana de cineastas que viria a ser designada "Movie Brats" (Coppola, Scorsese, De Palma, Friedkin, etc.), -- autor dos belíssimos e intensos A Estrada (La Strada, 1954), As Noites de Cabíria (Le Notti Di Cabiria, 1957), A Docevida (La DoceVita, 1960), 8 e 1/2 (Otto e Mezzo, 1963) ou Amacord (1973) -- mas é certamente aquele que me toca mais enquanto cinéfilo apaixonado pela arte do bom cinema. É tocante, e fascinante, a forma como Fellini filma a sua querida e amada Roma, é tocante a forma apaixonada como retrata a sua visão da cidade, pondo sempre em evidência as suas contradições e história. Sublime? Talvez. Irónico? Sem dúvida.


A Roma de Fellini é suja, é alegria, é exagero e sentimento. É também uma cidade de ilusão, de fabricantes de ilusão, do teatro, do cinema, da história. Ao mesmo tempo é uma cidade nostálgica, construída sobre diversas camadas de mito e realidade. É uma cidade corrompida mas sempre, sempre, eterna, com várias vidas e várias mortes. Roma é portanto tudo menos uma sinfonia. É muito mais um verdadeiro quadro fílmico onde podemos encontrar sobrepostos mito e realidade, sonho e pesadelo. Em Roma podemos encontrar uma saborosa mistura da Nova-Iorque de Woody Allen com a de Martin Scorsese -- ou não fosse o mestre Fellini um dos principais mentores do cinema de ambos os realizadores Norte-Americanos e um cineasta popular nos EUA, tendo ganho mesmo quatro Óscares (A Estrada, As Noites da Cabíria, 8 e 1/2, Amacord).


Roma tem como premissa central a sobreposição de presente e passado (realidade e mito, respectivamente) da cidade que empresta o nome ao título do filme. Com uma narrativa não-linear, que procura precisamente recriar essa sobreposição passado-presente, Roma deixa antever logo desde início um conjunto de imagens que em tudo procuram reproduzir na tela o "sentir" de Fellini. Tendo como fio condutor principal o percurso autobiográfico do próprio Fellini(está construído com diferentes camadas narrativas), o filme acaba por dar todo o destaque à cidade, verdadeira personagem central. Oscilando entre a representação da mítica herança Romana por entre o duro passado repressor da ditadura de Mussolini e a realidade de um presente nos anos 1970, o filme vai progredindo mais ou menos episódicamente até ao momento final em que a conclusão do autor Fellini nos é transmitida. Até ai, assistimos precisamente aos vários planos/quadros que fazem a essência da cidade: cidade do mito, do presente e do submundo. Assim, temos uma Roma mitológica. A Roma de Júlio César, dos feitos heróicos, da glória de um império mas também uma cidade localizada nos anos 1940 (o tempo podia ser outro qualquer), da ilusão portanto, que parece auto-recriar-se em torno dessas imagens do passado. Por outro lado, temos também a cidade do presente. Presente dos anos 1940, quando o próprio Fellini seria actor principal em todo aquele mundo, e presente dos anos 1970, quando será o próprio Fellini/realizador a mostrar a cidade através da imagem. Essa cidade presente vive intensamente, passa por revoluções e reconstruções culturais e, sobretudo, sobrevive, recria-se por entre contradições.

A Roma dos anos 40 é a Roma das festas, da alegria nas ruas, mas também a cidade que caminha para o fascismo, para a Segunda Guerra Mundial. Já nos anos 70, continua a mostrar-nos as suas duas faces. De um lado, temos a cidade monumental, turística, com todos os arquétipos conhecidos da Itália romântica. Do outro lado, continuamos a ter bem presente a Roma dos hippies, a moderna Roma dos eternos engarrafamentos, do caos da vida moderna, que vive do temperamento mediterrânico. Por fim, surge-nos aqui e ali a cidade do submundo, do inconsciente individual, um plano do excesso que sempre se mantém. Temos a Roma suja, exagerada; a cidade que transita dos anos 1940 para os anos 1970. Com a sombra da noite, com o fim dos festejos chega a cidade escura, solitária, silenciosa, a cidade operática, monumental, mas ao mesmo tempo castradora, por onde circulam pastores e ovelhas, mas também prostitutas obesas e envelhecidas. Essa vida boémia, do excesso (excesso de peso, excessos temperamentais), mantém-se sempre, apenas vendo aumentada a sua dureza.


Esta Roma de Fellini não é portanto um retrato idílico da cidade, é sim um exemplo perfeito do Neo-Realismo do realizador italiano, que começa nos anos 1970 a perder-se no cinema. As cores fortes que marcam a fotografia, aliada aos grandes planos, ajudam a criar todo um quadro que, antes de mais, impressiona pela sua quase banalização de tão excessivo, ou "real", que parece. Esta cidade feita de passado e presente surge-nos assim teatral, numa mistura brilhante entre documentário sério e puro insólito. Tudo neste filme parece gritar "Roma". Estão lá os velhos estereótipos, mas também a ironia suprema que marca o cinema de Fellini. À família, aos tipos sociológicos, aos ritos, aos cheiros e sabores de Roma, Fellini adiciona a ironia mordaz, sobretudo quando chega a vez de representar na tela a inevitável presença da Igreja Católica. Invocando toda a opulência do clérigo romano, Fellini compõe alguns dos momentos mais cómicos do filme, dos quais cito apenas aquele que se imortalizou na história do cinema mundial: repare-se em toda a longa sequência em que assistimos a um insólito desfile, onde nos são apresentadas as novas -- e exageradas -- tendências para a indumentária do clero católico, para freiras, frades, padres, bispos e, grande apoteose, para o próprio Papa.


Filme a ver sem dúvida. Intenso, exagerado, intimista, Roma é uma daquelas obras cinematográficas eternas que nos ensina a ver cinema, dado o experimentalismo estético rigoroso (contradição pois claro), a dimensão literária e a elasticidade técnica postas ao serviço de uma visão pessoal. Além do mais, o filme está recheado de pequenas pérolas em forma de sequências, detalhes de composição, montagem, que só por si colocam Roma num panteão imaginário de grandes obras. Tudo isto, pautado brilhantemente pela compsição sonora de Nino Rota (The Godfather), ajuda a criar um verdadeiro hino ao cinema de autor.


Pela primeira vez consegui assistir a essa obra prima ontem na televisão por assinatura. Eu pretendia escrever uma sinopse do filme mas acabei por achar esse excelente texto acima.

A seguir uma cena memorável desse filme.


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