Quarenta mil fiéis reconheceram o semblante sereno, celebrizado em fotos, num desfile no Vaticano na manhã do domingo 3. O corpo embalsamado do papa João XXIII cruzou a Praça São Pedro no esquife de vidro, emocionando a multidão que comemorava o dia de Pentecostes. Vestido com túnica branca, capa e gorro vermelhos, o cadáver confirmou o extraordinário relato dos legistas que o exumaram. A história veio à tona há dois meses. Imune ao tempo, João XXIII preserva a aparência do octogenário bonachão. Seu papado durou quatro anos e sete meses (1958-1963), o suficiente para o pontífice aproximar a Igreja do povo. Convocou o Concílio Vaticano II, que, entre outras mudanças, aboliu o latim nas missas e permitiu o uso de idiomas locais.
Responsável pela conservação do corpo, o médico italiano Gennaro Goglia, de 78 anos, perfilava-se na multidão da praça. Goglia decidiu revelar na semana passada a técnica de embalsamamento que utilizou. Injetou no corpo 5 litros de um coquetel de substâncias conservantes, entre as quais álcool, sulfato de sódio e nitrato de potássio. “Devo admitir: aquele trabalho foi um pouco macabro”, diz o professor de anatomia da Universidade Católica de Roma. O legista optou por não retirar o sangue. “Poderia cair em mãos erradas e ser vendido como relíquia”, afirma. O cadáver foi enterrado num caixão lacrado. Isso ajudou a deter a decomposição. Com a exumação, recebeu nova preparação química, e o rosto, escurecido, ganhou uma camada de cera. De acordo com Goglia, o próprio chefe da Igreja, pouco antes de morrer, pediu-lhe que cuidasse do funeral. Ficara impressionado com as exéquias do antecessor, Pio XII, cujo corpo começou a exalar mau cheiro durante o velório de cinco dias.
No passado, a preservação do corpo de ícones da Igreja era vista como milagre. Há pelo menos duas décadas a Igreja admite o uso de poderes artificiais para conservar suas relíquias. João XXIII dependeu de outro tipo de fenômeno sobrenatural para ser consagrado beato, em 2000. O Vaticano atribuiu a ele o milagre da cura da freira italiana Caterina Capitani. Em 1966, ela se livrou de um câncer no estômago depois que colocaram sobre seu ventre uma foto do pontífice. Caterina também estava entre os fiéis na Praça São Pedro. “Este é um dia muito especial”, disse, comovida.
Milagres da químicaA imagem de um ídolo morto impressiona os fiéis – e a Igreja não menospreza esse efeito. Em 1986, o patologista Ezio Fulcheri, da Universidade de Gênova, foi convocado pelo Vaticano para conservar o corpo já embalsamado do cardeal ucraniano Josef Slipyj, morto em 1984 e enterrado na Itália. Slipyj resistiu ao comunismo e, por isso, a Santa Sé queria torná-lo santo. Uma das estratégias seria transformar seu cadáver em relíquia. Por quatro meses, foi mergulhado numa substância química que interrompeu a decomposição. Depois, levou-se o caixão para Lviv, na Ucrânia, onde é venerado. O processo de canonização empacou nos anos 90. Diz-se que o Vaticano perdeu a pressa após o colapso da União Soviética.
A igreja católica, profícua fábrica de santos, adora preservar atificialmente corpos humanos visando justificar os "milagres".
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