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domingo, 31 de julho de 2011
O prontuário de Darwin
Uma hipótese para explicar os eczemas, crises de vômito e flatulência que acometiam o naturalista
RESUMO
O pai da teoria da evolução das espécies padecia de um raro conjunto de sintomas que lhe causavam grande desconforto, porém jamais apontaram para um diagnóstico preciso. Uma anomalia no DNA mitocondrial sugere que ele sofria da síndrome dos vômitos cíclicos, mal conhecida porém descrita na literatura médica.
JOHN HAYMAN
tradução CLARA ALLAIN
Charles Darwin (1809-82) sofreu, durante a maior parte da vida adulta, de uma doença persistente e debilitante, que se manifestava numa profusão de sintomas bizarros. Ataques de náusea e vômito eram o que mais o afligia, mas Darwin também sentia dores de cabeça, dores abdominais, nas costas e nos membros (reumatismo), palpitações e dores no peito, formigamento nos dedos, transpiração, sensibilidade ao calor e ao frio, edema e rubor no rosto e nas extremidades, eczema, furúnculos recorrentes, ataques de ansiedade aguda, choro histérico e sensação de morte iminente.
Os sintomas abdominais eram associados a muita flatulência, com a expulsão ruidosa de gases fétidos e penetrantes. Ainda por cima, amargava momentos de letargia profunda, que o deixavam agarrado ao sofá.
Afora esses sintomas mais frequentes, Darwin volta e meia vomitava sangue, ficou com os dentes podres e cariados e desenvolveu manchas na pele. O enjoo, que durou os cinco anos de sua histórica viagem no veleiro HMS Beagle, também era resultado de sua doença. A moléstia era incomum, sem dúvida, mas tinha características mais raras ainda:
- O mal era episódico, com acessos desencadeados por eventos estressantes, ainda que muito leves ou até agradáveis, como visitas de amigos;
- O vômito ocorria várias horas após as refeições (e não logo depois, como na bulimia);
- Os sintomas mais importantes tinham relação estreita com o eczema e com o reumatismo (fibromialgia). Darwin notava que, quando uma dessas condições se agravava, as demais melhoravam;
- Darwin obtinha alívio, pelo menos de início, com a hidroterapia ou "cura pelas águas".
JOGO DE ADIVINHAÇÃO Do momento em que ele começou a exibir os sintomas até hoje, já foram propostos mais de 40 diagnósticos de seu mal. Muitos podem ser descartados, pois descrevem estados que não têm mais reconhecimento pela ciência ("dispepsia agravada", "gota suprimida") ou existem apenas na medicina alternativa ("pirroluria", "sobrecarga de cândida").
Os diagnósticos associados à expedição no Beagle, como doença de Chagas, malária e brucelose, também não valem, pois já Darwin apresentava sintomas nítidos antes de zarpar. O mal que o acometeu em Valparaíso, no Chile, em 1834, foi isolado; provavelmente era tifo. As diversas condições gastrointestinais aventadas como causas de seu mal (doença biliar, doença de Crohn, ulceração péptica) podem explicar alguns dos sintomas, mas não todos.
Foram sugeridas raízes psicológicas ou psicogênicas para a doença. Sir George Pickering, professor de medicina em Oxford entre 1956 e 68, descreveu com eloquência a doença de Darwin como "sintomatologia polimorfa", para em seguida concluir erroneamente que ela seria de natureza psicogênica: "O argumento em favor de uma psiconeurose é primordial, uma vez que os sintomas a sugerem e que, avaliados no conjunto, não permitem outra explicação".
Darwin por certo apresentava algumas das condições apontadas como causa central de sua moléstia, como alergias múltiplas, ataques de ansiedade e de pânico, além de sintomas psiquiátricos como períodos de depressão. Mas tudo isso fazia parte da doença, não de suas causas.
Os dentes apodrecidos e os vômitos de sangue podem ser lidos como complicações de sua disfunção. O eczema já foi identificado por fonte confiável como uma dermatite atópica, mas esse diagnóstico não explica os sintomas gastrointestinais e nervosos. Pacientes com dermatite atópica abrigam estafilococos (bactérias infecciosas) na pele e estão sujeitos a furúnculos recorrentes. A alteração na pigmentação da pele foi uma resposta fisiológica ao aumento da secreção de ACTH (hormônio adrenocorticotrófico) e, concomitantemente, da secreção do hormônio melanotrófico (MSH), decorrente de perda de sal e de fluidos.
A mãe de Darwin morreu quando ele tinha oito anos; tudo indica que ela sofria de doença semelhante, tendo sido mergulhada no mar irlandês gelado, quando criança, "para curar seus vômitos e furúnculos". Adulta, não conseguia andar de carruagem sem adoecer; sofreu enjoos intensos durante a gravidez e morreu com dores abdominais na idade relativamente precoce de 52 anos.
Tom, irmão mais novo da mãe de Darwin, tinha fortes dores de cabeça e males abdominais; ficou encerrado em sua cabine, mareado, durante a única viagem que fez às Índias Ocidentais -expedição que foi uma tentativa de fortalecer sua saúde. Tom morreu de overdose de ópio aos 34 anos.
HERANÇA MATERNA Darwin sofria da síndrome dos vômitos cíclicos (SVC), condição pouco conhecida, mas amplamente descrita. Esse transtorno pode guardar relação com uma disfunção mitocondrial. Nos humanos, as mitocôndrias são herdadas da mãe -o óvulo contém centenas delas, e as poucas presentes no espermatozoide se perdem dentro do óvulo fecundado. Quando existe um histórico materno de disfunção, como na família de Darwin, é provável que se deva a uma anormalidade herdada do DNA mitocondrial.
Contudo, a maioria das enzimas mitocondriais é codificada pelo DNA do núcleo da célula; nos pacientes sem anomalias no DNA mitocondrial, a anomalia provavelmente tem origem nos cromossomos nucleares. Uma anomalia no DNA nuclear também poderia explicar a frequente associação da doença à herança paterna.
As mitocôndrias fornecem a maior parte da energia para a função celular, produzindo moléculas ATP (adenosina trifosfato) a partir das moléculas ADP (adenosina difosfato). Independentemente da natureza da anomalia enzimática, o resultado é muito semelhante: a redução na produção de ATP.
As mitocôndrias se dividem durante a divisão celular e passam aleatoriamente para as células-filhas, de modo que a proporção de mitocôndrias normais para anormais pode variar muito nas gerações celulares subsequentes. Por causa disso, pacientes que apresentam a mesma anomalia no DNA mitocondrial podem ter sintomas muito distintos ou até mesmo não exibir sintoma nenhum.
Os sintomas dos pacientes diagnosticados com SVC também oscilam. Alguns podem apresentar episódios ocasionais de náusea e vômito, ao passo que outros ficam gravemente incapacitados, com dores de cabeça e abdominais, além de letargia profunda. Outros ainda apresentam flatulência grave, sintomas de fibromialgia e eczema.
Crises de pânico podem ocorrer no início ou no decorrer de um acesso. Alguns sentem enjoo a ponto de não conseguirem assistir à televisão quando há cenas de movimento rápido; uma mãe relatou não poder observar os filhos brincando em um balanço no playground. Muitos apresentam intolerância ao calor ou ao frio.
Os acessos podem ser desencadeados por fatores estressantes, especialmente os positivos, como a expectativa em relação a um feriado. Essas crises são comuns no Natal, e, nos EUA, no Dia de Ação de Graças (a quarta quinta-feira de novembro). Assim como Darwin, muitos pacientes sentem alívio quando expostos à água e costumam passar horas no chuveiro durante os ataques.
CURA PELA ÁGUA A eficácia da "cura pela água" no caso de Darwin pode ser entendida por dois mecanismos diferentes, mas não incompatíveis.
Primeiro, a prática talvez tenha reduzido os sintomas abdominais. Segundo, é possível que houvesse fatores psicológicos. Sabemos que as crises da doença de Darwin eram desencadeadas por estresses leves, até mesmo os relacionados a sensações e ideias prazerosas.
A cura pela água, especialmente no início, era feita em estações termais onde, com a exceção dos tratamentos dolorosos, havia pouquíssimos estímulos.
Além da profusão de sintomas, todos eles observados hoje em pacientes com SVC, Darwin apresentava uma série de outros, não menos sinistros. Sofreu paralisia temporária e perda de memória, manifestações que não seria errado descrever como semelhantes a derrames cerebrais. Trata-se de características da síndrome de Melas (miopatia mitocondrial, encefalopatia, acidose lática e episódios similares ao AVC).
Já foi demonstrado que a síndrome de Melas é associada à mutação genética mitocondrial descrita como A3243G; também já se mostrou que tal mutação está presente em alguns casos de SVC. Como Darwin apresentava indícios de ambas as síndromes, CVS e Melas, é razoável supor que ele -assim como a mãe e o tio materno- tivesse a mutação A3243G.
A eficácia da "cura pela água" no caso de Darwin pode ser entendida por dois mecanismos diferentes, mas não incompatíveis
Darwin volta e meia vomitava sangue, ficou com os dentes podres e desenvolveu cáries dentárias e manchas na pele
Do momento em que o cientista começou a exibir os sintomas até hoje, já surgiram mais de 40 diagnósticos sobre seu mal.
Folha de SP-31 de Julho
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