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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A Homeopatia na Encruzilhada

Renato Sabbatini

ponto principal da argumentação de defesa dos homeopatas é que ela não quer brigar no mesmo terreno que a alopatia, pois propõe e implementa um modelo diferente de medicina. Nada de errado aí, acho mesmo que o modelo de atenção da homeopatia tem muitos méritos. O homeopata se orgulha de gastar uma hora e meia com o paciente na primeira consulta, de examinar o paciente de forma completíssima, etc., e os pacientes, evidentemente, adoram. Isso tem o seu efeito terapêutico. Mas será que a medicina alopática também não conseguiria muito melhores resultados, se adotasse uma filosofia semelhante (como já o fez no passado ?). É uma questão interessante. Acho que a homeopatia deveria desenfatizar o uso de medicamentos da Materia Médica, e, ao invés disso, propor a generalização de seu modelo, e que a relação médico-paciente, em toda sua riqueza e complexidade, seja mais valorizada. Infelizmente, sabemos este é um imperativo mais econômico do que médico-científico. Enquanto os convênios pagarem 29 reais por consulta, muitos poucos médicos vão querer passar uma hora e meia com o paciente, não é mesmo ?
Enquanto isso, a homeopatia não deve e não pode se furtar ao escrutínio do método científico e à fiscalização da sociedade. Existem várias afirmações feitas pelos homeopatas que me deixam extrememamente preocupado. Por exemplo:
"Se o paradigma homeopático não é o mesmo da alopatia, sua avaliação obviamente também não o é. A homeopatia no Brasil já saiu dessa fase negra, de querer se enquadrar nos paradigmas da alopatia. Estamos em fase de nos organizarmos e olharmos para o próprio umbigo; [...]" 
Esse tipo de posicionamento é muito negativo para a homeopatia. Caracteriza um comportamento de exclusão, de isolamento, de xenofobia, de que "as coisas só funcionam se eu fizer, se outros fizerem, não funcionam", de que "meu método não pode ser avaliado por pessoas externas ao meu grupo", de que "as fontes de informação são diferentes", etc. Estas são atitudes muito mais próprias de uma religião, ou de um sistema de crenças, do que de ciência !
Um fato que impressiona na homeopatia é a sua recusa em rever e modificar suas bases de conhecimento. Tudo ainda se apoia no que Hahnemann disse há dois séculos atrás. A conclusão a que chegamos é que, no dia em que a homeopatia fizer essa revisão, vão acontecer duas coisas:
1. vai deixar de ser homeopatia, pois ela se baseia numa linha dogmática e doutrinária. A homeopatia é o que Hahnemann disse que é. Leiam as acusações candentes da Comissão Nacional contra a Fraude na Saúde, dos EUA contra a prática homeopática,
2. vai descobrir que todos os seus principios doutrinários nao tem enbasamento cientifico. Portanto vai ter que se auto-dissolver.
A caracteristica de toda ciência é progredir, rever, reformular, reinterpretar. A ciência pode ter paradigmas, dogmas jamais. A natureza da ciencia é o permanente ceticismo, inclusive sobre o seu proprio conhecimento. Até mesmo os paradigmas são quebrados e inteiramente reformulados de vez em quando (vide Thomas Kuhn).
A homeopatia é ciência ? Ou é um culto, uma seita ? É a grande pergunta...
Por tudo que tenho observado (e observo bastante, pois faço parte da diretoria da Associação Médica Brasileira), a medicina homeopática anseia ser ciência, deseja se integrar e ser aceita pela comunidade médica, deseja ensinar, propagar seus conhecimentos e conquistar mais adeptos no meio médico alopático. Então, se quer ser ciência, procure seguir os paradigmas da ciência.
O principal obstáculo para que a homeopatia seja aceita pelas Faculdades de Medicina é que ela se baseia em princípios doutrinários, ao invés de científicos, e faz questão de apregoar isso e incluir isso em seus programas de formação. A medicina moderna, que cada vez mais se baseia em evidências (Evidence-Based Medicine - EBM), nas descobertas fundamentais da biologia celular e molecular, etc., e na qual a velocidade do progresso de conhecimento é medida em semanas ou dias entre novos dados; nunca levará a sério a homeopatia, com sua insistência em Hahnemann, coisas e conhecimentos totalmente obsoletos e não comprovados de dezenas ou centenas de anos atrás.
Enquanto a medicina era empírica, e os métodos de investigação científica na área clinica, primitivos, a homeopatia até que tinha uma chance de competir, pois os medicamentos alopáticos também não tinham seus princípios de ação conhecidos; e a abordagem casuística ainda tinha algum valor comparativo.
No entanto, a partir da descoberta da insulina, por Banting e Best, em 1921, do Salvarsan, por Ehrlich, em 1908, e principalmente, da penicilina, por Fleming, a medicina tornou-se a uma disciplina científica, sem volta. A homeopatia, se apoiando em coisas que vão contra o conhecimento amplamente e inúmeras vezes comprovado, a respeito da causação patológica das doenças, dos principios da farmacodinâmica, e do conhecimento do mecanismo de ação das drogas em receptores, membranas, mecanismos de transporte molecular, etc., tornou-se inaceitável para a medicina científica. Essa é a realidade, e a tendência no mundo todo (menos no Brasil...) é de eliminação radical da homeopatia do cenário acadêmico e até assistencial.
Uma pergunta: se a homeopatia realmente funciona, quantos diabéticos ela salvou antes da descoberta da insulina ? Quantos sifilíticos ela curou antes da descoberta do salvarsan ? Quantas crianças com meningite ela poupou da morte, antes da penicilina ? Para mim é evidente que, antes dessas descobertas tecnológicas de enorme impacto, que aumentaram a vida média da população dos países desenvolvidos, apenas neste século, em mais de 20 anos, a homeopatia era totalmente impotente contra essas doenças. Se ela funcionasse mesmo, a humanidade teria sofrido muito menos, há muito tempo...
Sou professor de fisiologia no curso de Medicina desde 1968. Ensinei a varias gerações de futuros médicos todos os principios básicos que regem o funcionamento do nosso organismo na saúde e na doença, e da abordagem racional da medicina científica, apoiada nesses conhecimentos. Me parece absurdo e inaceitável que alguns desses mesmos médicos tenham renunciado voluntáriamente à lógica do conhecimento científico para abraçar crenças supostamente baseadas em mero empiricismo ! Ou pior, em "leis" imutáveis ao longo dos séculos ! Se a própria lei de gravitação universal de Newton foi mudada, porque nada muda na homeopatia ? Isso não é pesquisa, doutores homeopatas, sinto muito. Nenhum pesquisador médico estabelecido em universidade aceita uma coisa dessas: uma "ciência" regida como se fosse um culto ou uma seita, e não na objetividade científica, independente e eternamente cética !
Os homeopatas argumentam que não se pode expressar opinião desfavorável a homeopatia sem que a mesma tenha as mesmas condições de pesquisa e financiamento que a alopatia. Alegam que se as mesmas condições de pesquisa e ensino fossem dadas à Homeopatia e à Alopatia poderíamos então chegar a conclusões muito mais sólidas e proveitosas não só para os pesquisadores assim como para a população em geral.
No entanto, essas condições já são dadas, e a homeopatia não conseguiu comprovar sua eficácia real. Foram realizados mais de 100 estudos clínicos duplo-cego (vejam bem, apenas para testar as alegações de que os medicamentos ultradiluídos têm algum efeito farmacodinâmico), com a grande maioria dando resultados que não podiam ser diferenciados em relação ao placebo. Isso só vem reforçar o "preconceito" da medicina de vanguarda contra a homeopatia. Aliás, os homeopatas se enganam quando dizem que o modelo de pesquisa médica duplo-cego foi feito para avaliação da medicina alopática e não pode ser usado para a medicina homeopática. Ele é um método geral, embasado na investigação objetiva, comparativa e o mais livre de vieses possivel. Se os homeopatas rejeitam o duplo-cego, por neutralizar e invalidar a metodologia básica da homeopatia, que é justamente a da interação complexa com o "totus" do paciente, existem outras maneiras de efetuar comparações científicamente válidas.
Em conclusão, a homeopatia não pode se trancar num gueto e escapar da avaliação da sociedade. Não pode ficar presa no seu proprio mundinho, só publicando nas suas revistas, só comunicando nos seus próprios congressos, etc. Não pode extrapolar, querendo curar todas as doenças do homem usando uma abordagem única.
Para mim, existem alguns pontos na filosofia homeopática que contradizem frontalmente o conhecimento científico vigente e até a lógica. Um deles é o inescapável número de Avogadro, que determina o número de moléculas existentes em uma determinada quantidade de matéria. Outro é o que a biologia molecular sabe sobre a interação droga-receptor e as ações em nivel de membrana celular. Não creio que devam ser aceitáveis por médicos treinados nas faculdades para uma exercer uma medicina baseada em evidências, afirmações sobre pretensos mecanismos obscuros e nunca comprovados, como "memória da água", energizações, etc. Uma coisa que ninguém entende é o seguinte: porque precisa haver uma memória do medicamento ativo na água ? Se ela existe e é efetiva, então a própria molécula do medicamento seria mais efetiva ainda... Esses alegados efeitos dinâmicos e energéticos da água não têm o menor respaldo na física e na química, e me parecem mais uma espécie de "saida honrosa" para a inexplicável "lei dos infinitesimais".
A homeopatia se expõe a acusações sérias, contempladas no código penal brasileiro, ao receitar preparações nas quais afirma existir um "quantum" de substância ativa, mas que pelo nosso conhecimento de química nada contém. Se uma empresa farmacêutica que vende medicamentos alopáticos fizesse isso, ia todo mundo para a cadeia, não é verdade ? (e o médico homeopata, que por vezes têm que recorrer a um antibiótico forte ou um carcinostático para debelar coisas mais sérias e potencialmente letais, seria o primeiro a denunciar a companhia farmacêutica se perdesse um paciente por causa duma coisa dessas, tenho a certeza).
Um exemplo: desde 1938, a Pharmacopeia Homeopathica e os produtos homeopáticos fabricados e distribuidos são isentos de aprovação e de fiscalização por parte da Food and Drugs Administration, nos EUA. Porque ? Essas e outras coisas é que por vezes provocam reações contra a homeopatia. A população precisa ser esclarecida com relação a real eficácia de sua abordagem, e sobre as visões contrárias à mesma. Isso é o que eu (e muita gente no meio médico) pensa.

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