Samuel Pinheiro Guimarães é ministro chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). Artigo publicado no "Valor Econômico":
O acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera provoca o aquecimento global com catastróficas consequências. Correspondem a dióxido de carbono (CO2), 77% deles, resultado da queima de combustíveis fósseis para gerar energia elétrica e movimentar indústrias e veículos.
A redução das emissões de CO2 é essencial para impedir que a concentração de gases provoque o aumento de 2º C na temperatura, limiar máximo tolerável, devido ao degelo das calotas polares e ao aquecimento dos oceanos o que levaria à inundação das zonas costeiras, onde vivem cerca de 70% da população mundial.
A solução da crise ambiental depende da transformação da matriz energética, em especial das usinas de geração de eletricidade de modo a que venham a utilizar fontes "limpas" de energia. Os países que são importantes emissores de gases não têm recursos hídricos suficientes ou não têm capacidade para gerar economicamente energia eólica e solar.
Resta a energia nuclear para gerar energia elétrica em grande escala, uma vez que boa parte dos problemas ambientais e de segurança estão superados. Patrick Moore, fundador do Greenpeace, declarou: "A energia nuclear é a única grande fonte que pode substituir os combustíveis fósseis".
Das reservas de urânio, 81% se encontram em seis países. O Brasil tem a 6ª maior reserva de urânio e a estimativa é de que possa vir a deter a terceira maior. O Brasil é um dos oito países que detêm o conhecimento do ciclo completo do enriquecimento de urânio e a capacidade industrial para produzir todas as etapas do ciclo. A China e a Índia, com populações em situação de extrema pobreza, terão de instalar capacidades extraordinárias de usinas não poluentes para aumentar a oferta de energia elétrica sem aumentar suas emissões de CO2.
É urgentíssimo diminuir a emissão de gases de efeito estufa e, ao mesmo tempo, acelerar o crescimento econômico para retirar centenas de milhões da pobreza abjeta em que vivem. Isso só é possível com a geração de energia elétrica a partir do urânio.
A deterioração das condições climáticas e fenômenos naturais extremos farão com que a urgência de medidas de reorganização econômica se imponha. Assim, o mercado internacional para urânio enriquecido será extremamente importante, caso se queira evitar catástrofes climáticas irreversíveis.
Propostas dos países nucleares, sob o pretexto de enfrentar ameaças terroristas, afetam profundamente as possibilidades de participação do Brasil nesse mercado. Essas propostas procuram concentrar nos países altamente desenvolvidos a produção de urânio enriquecido e impedir sua produção, em especial naqueles países que detêm reservas de urânio e a tecnologia de enriquecimento.
Os países nucleares procuram restringir a transferência de tecnologia, impedir o desenvolvimento autônomo de tecnologia e conhecer o que os demais países estão fazendo, sem revelar o que eles mesmos fazem. O Protocolo Adicional aos Acordos de Salvaguarda com a AIEA é um instrumento contra os países onde há capacidade de desenvolvimento tecnológico, como é o caso do Brasil. Onde não há essa capacidade o protocolo não tem nenhuma importância, nem para os que dele se beneficiam nem para aqueles que a suas obrigações se submetem.
A concordância do Brasil em assinar um Protocolo Adicional ao Acordo de Salvaguardas, que é instrumento do Tratado de Não Proliferação (TNP), permitiria que inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), sem aviso prévio, inspecionassem qualquer indústria que considerassem de interesse além das instalações nucleares (inclusive as fábricas de ultracentrífugas) e o submarino a propulsão nuclear, e tivessem acesso a qualquer máquina, a suas partes e aos métodos de sua fabricação, ou seja, a qualquer lugar do território brasileiro, quer seja civil ou militar, para inspecioná-lo, inclusive instituições de pesquisa civis e militares.
Os inspetores são formalmente funcionários da AIEA, mas, em realidade, técnicos altamente qualificados, em geral nacionais de países desenvolvidos, naturalmente imbuídos da "justiça" da existência de um oligopólio nuclear não só militar, mas também civil, e sempre prontos a colaborar não só com a AIEA, o que fazem por dever profissional, mas também com as autoridades dos países de que são nacionais.
O Protocolo Adicional e as propostas de centralização, em instalações "internacionais", da produção de urânio enriquecido são instrumentos disfarçados de revisão do TNP no seu pilar mais importante para o Brasil, que é o direito de desenvolver tecnologia nuclear para fins pacíficos. Essa foi uma das condições para o Brasil aderir ao TNP, sendo a outra o desarmamento geral, tanto nuclear como convencional, dos Estados nucleares, como dispõe o Decreto legislativo 65, de 1998.
Todavia, desde 1968, quando foi assinado o TNP, os Estados nucleares incrementaram de forma extraordinária a letalidade de suas armas nucleares e convencionais e assim, portanto, descumpriram as obrigações que assumiram ao subscrever o TNP. E agora desejam rever o Tratado para tornar sua situação ainda mais privilegiada, seu poder de arbítrio ainda maior e a situação econômica e política dos países não nucleares ainda mais vulnerável diante do exercício desse arbítrio.
Ao contrário da enorme maioria dos países que assinaram o Protocolo Adicional, o Brasil conquistou o domínio da tecnologia de todo o ciclo de enriquecimento do urânio e tem importantes reservas de urânio. Só três países - Brasil, Estados Unidos e Rússia - têm tal situação privilegiada em um mundo em que a energia nuclear terá de ser parte importante e indispensável da nova economia livre de carbono, fundamental à sobrevivência da humanidade. Aceitar o Protocolo Adicional e a internacionalização do enriquecimento de urânio seria um crime de lesa-pátria.
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