LEONARDO SAKAMOTO
Um evento de grandes proporções, como a Jornada Mundial da Juventude, merece uma cobertura à altura. Da mesma forma, a visita de Francisco ao Brasil tem relevância jornalística por ser o líder espiritual de dois terços (mesmo que não praticantes) de brasileiros e o primeiro papa nascido no continente americano.
Mas existe uma diferença entre jornalismo e aquilo que você está vendo na TV, nos últimos dias, sobre a vinda do homem. Na noite desta sexta, ao assistir ao telejornal de fim de noite da Globo, tive a impressão de que a emissora o havia substituído pelo “Santa Missa em seu Lar” - que pegava de relance quando voltava da balada no domingo de manhã para espiar meus pecados. Gente… Deu para sentir a água benta respingando da tela. Se gravar o conteúdo dos telejornais em DVD dá para o Vaticano distribuir como media kit da vinda do papa.
Não digo isso pelo tamanho da cobertura. Mas pela total falta de senso crítico da mesma. O espírito crítico está longe de ser santo, mas é um dos elementos que diferencia a atividade jornalística de outras, como da publicidade. E a emissora faz valer esse senso crítico ao cobrir política, por exemplo. Por que ignora isso ao tratar de outras relações hegemônicas?
Quem acha que isso não diz respeito aos não-católicos não tem ideia de quanto a instituição em questão continua influenciando o cotidiano das pessoas em um país como o nosso. Basta ver como as liberdades individuais são limitadas pela disputa simbólica, política e legal levadas a cabo por representantes da Igreja Católica. Situação que é reafirmada sistematicamente através de veículos de comunicação.
É sério. Se eu assistir a mais uma matéria entrevistando as cozinheiras que vão servir doce de leite para o papa argentino, as camareiras que prepararam o quarto dele, as galinhas que colocaram os ovos que ele comerá, vou ter uma síncope. Há uma preocupação máxima em preencher espaço com a presença do pontífice, mesmo que isso signifique encher caminhões de linguiça. Há muitas coisas interessantes a falar, a bem da verdade. Mas, daí, a cobertura teria que ser crítica, debruçar-se mais sobre a disputa entre o catolicismo e denominações evangélicas neopentecostais. Ou sobre os desafios de liderar uma geração que, mesmo respeitando nas palavras do papa, abre o pacote de camisinha cada vez mais cedo.
“Ah, mas é o interesse público, japonês!” Poderíamos ficar anos aqui discorrendo quem define o que é o difuso “interesse público”. A minissérie “Hoje é Dia de Maria”, com narrativa e estética diferentes do convencional, teve uma bela audiência junto ao povão, mesmo com os críticos dizendo que ela seria um fracasso – mas preferimos continuar achando que a galera gosta mesmo é de peito, bunda, sexo debaixo do cobertor com câmeras de infravermelho – consentido ou não.
Por que o povo assim o quer? Ou por que é perigoso dar elementos para estimular o povo a sair de sua zona de conforto e da letargia a que está condenado? Vai que ele acorda, né? O povo. Não o gigante.
Cada um tem seu posicionamento diante do mundo. Uns com forte relacionamento com a Igreja Católica, que representa o establishment, o status quo. Outros são propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus e tentam comer pelas beiradas. Há ainda os que se abrem em fúria para vender espaço de exibição para a denominação religiosa que pagar mais. Mesmo que tenha líderes homofóbicos e preconceituosos.
O problema é que estamos falando de concessão pública.
O Estado é laico. Isso significa que ele deve defender a livre expressão religiosa de todos, sem tomar partido de nenhum credo especificamente. Garantindo, por outro lado, que a manifestação da fé de alguém não se torne motivo para suplício e sofrimento de outros.
Quando o Estado concede por tempo determinado, sob contrato e com regras de utilização o espaço público para fins privados, a mesma regra deveria ser aplicada. Ou seja, esse espaço não poderia ser usado para promocão de determinado credo em detrimento a outros.
Concessões de rádio e TV não deveriam ser absolutas e não poderiam ignorar a laicidade do Estado. O mesmo não se aplica a jornais, revistas e outros meios que não contam com concessão para transmitir seu conteúdo. Eles podem fazer o que quiserem, professando o credo que melhor lhe aprouverem, respeitando as regras de civilidade e a dignidade alheia, é claro. Porque esta não é uma discussão para calar a voz de religiões, mas – pelo contrário – garantir que todas tenham voz. Lembrando que uma democracia não é apenas a expressão da vontade da maioria, mas o respeito à dignidade das minorias.
“Ah, não está satisfeito com que passa em uma TV, desligue o canal, japonês!”. Como eu gostaria de desligar o mundo inteiro de vez em quando! Mas não dá. O problema não é o que vou assistir, mas os monstrinhos que a TV vai formando e vão ter que conviver conosco, em sociedade. A resposta rasa é ótima como mantra, mas não para uma discussão sobre qual sociedade queremos.
Ou seja, você, que se sente oprimido pela maioria ou fica revoltado com o status quo, tem sim uma opção: mude-se ou mude o seu comportamento. Antes que a gente vá até aí e te dê um sova.
Enfim, Brasil em Cristo. Ame-o ou deixe-o.
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