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quarta-feira, 3 de julho de 2013
Nove coisas que todo brasileiro deveria e pode saber sobre a monarquia
A instrução é quase nula, à medida que também é quase nulo o gosto de instruir-se; e temos em casa o exemplo. Acabais de ouvir que o dispêndio feito com as escolas desta cidade é muito inferior ao que se faz com a polícia: sinal evidente de atraso intelectual. Segundo a opinião dos competentes, a proporção regular entre o número de habitantes de um lugar e o das pessoas que devem frequentar a escola é de 12 a 15 por cento, se esse lugar quer ter o título de adiantado. Ora, dos três mil espíritos, que dissemos haver aqui dentro, 4 por cento e alguns quebrados é que se encontra realmente de frequência em cinco casas de instrução que existem, sendo somente 7 por cento o número de matriculados! ... Vê-se, pois, que ainda entre nós há uma certa má suspeita contra a arte diabólica de ler e escrever.
Tobias Barreto
As palavras que abrem esta postagem são de Tobias Barreto (1839-1889), transcritas do livro O Império do Brasil, de Lúcia Neves e Humberto Machado. O filósofo e jurista sergipano se referia às mazelas do município pernambucano de Escada no ano de 1879, mas sua intenção era criticar o quadro educacional do Brasil como um todo. Alguns leitores talvez já tenham se perguntado por que motivo um blog cujas características são mais de trincheira política do que de fonte para pesquisa escolar reúne tantas informações sobre a monarquia sem que haja um partido monarquista consistente a combater ou qualquer perspectiva de "restauração" no horizonte institucional ou nos gritos das ruas.
A primeira parte da resposta é muito simples: o Brasil do século XIX constitui o foco principal das investigações do autor do blog há mais de uma década, e inúmeras vezes as correlações entre o que foi estudado e a atual conjuntura social, econômica e política do país se impõem de maneira irresistível. A segunda envolve um pouco mais de subjetividade; se é certo que a maioria esmagadora dos dirigentes brasileiros detestaria ver seus projetos de classe (e/ou suas ambições pessoais) sujeitos aos caprichos de um Poder Moderador exercido por qualquer aristocrata esnobe provido pela sorte dos genes de D. Maria I, a Louca, não é menos verdadeiro que a grande mídia expõe uma visão antes ufanista do que negativa do regime caído em 1889.
O fenômeno nada tem de gratuito: ainda que uma ou outra minissérie noturna exiba a velha caricatura do D. João VI alienado e devorador de coxinhas e que um ou outro documentário histórico recupere a óbvia conexão entre monarquia e escravismo, prevalecem as versões que apresentam o Império, em particular o reinado do segundo imperador, como uma época de austeridade onde quase todos ostentavam honestidade e decoro, inclusive os políticos de carreira! Nada mais conveniente para a direita: o cidadão comum se vê induzido a crer que havia moralidade exemplar nos tempos em que as mulheres cuidavam de casa em jornada integral e que as condições de nascimento, salvo rara exceção, determinavam quem devia mandar e quem devia obedecer resignadamente.
Já tratei em outras matérias das patifarias de barões, viscondes e marqueses, mas isto tem efeito limitado sobre quem se apega ao mito. Mesmo que eu dispusesse de horas vagas em quantidade suficiente para demonstrar a participação de mil membros da falecida classe senhorial em crimes comuns e situações de abuso de poder, tanto os conservadores fanatizados quanto os puramente cínicos diriam que trabalho com exceções. Decido então trazê-los à realidade por meio da lembrança de aspectos da organização político-administrativa e da vida socioeconômica do Império que não poderão contestar sem entrar no terreno do delírio.
1-Nunca existiu, no Império do Brasil, eleição para a chefia do Poder Executivo no âmbito regional. Cabia ao imperador nomear os presidentes das províncias, podendo em tese também removê-los a qualquer momento baseando-se apenas em seus critérios pessoais. Estas autoridades, quase invariavelmente, estavam ligadas ao partido que detinha o governo central, o que gerava graves distorções: durante um período de domínio conservador, o eleitorado da província do Rio Grande do Sul, que tendia maciçamente para os liberais, seria obrigado a suportar contra sua vontade uma administração conservadora; o inverso ocorreria com a nomeação de um presidente liberal para a província do Rio de Janeiro, onde predominavam os conservadores por ampla margem.
2-A despeito da propaganda tendenciosa dos historiadores monarquistas que enaltecem a presumida participação generalizada da população brasileira nas eleições do Império, breve consulta à legislação eleitoral nos prova que somente uma diminuta minoria exercia direitos políticos em sua plenitude. Pelo decreto de 26 de março de 1824 ficou convencionado que "Toda a paróquia dará tantos eleitores, quantas vezes contiver o número de cem fogos em sua população" (o termo "fogo" significava uma habitação independente). Cerca de meio século mais tarde, o decreto nº 2675 de outubro de 1875 estipulou o tamanho do eleitorado "na razão de um eleitor para cada 400 habitantes de qualquer sexo ou condição, com a exceção dos súditos de outros Estados". Na prática, apenas estes 0,25% dos brasileiros, ditos eleitores secundários, votavam nos candidatos a deputado provincial, deputado geral e senador. Ressalto que as condições postas para alguém ter o direito de ser votado eram ainda mais restritivas.
(Ver Francisco Belisário Soares de Souza. O sistema eleitoral no Império. Brasília: Senado Federal, 1979, p. 188 e 257)
3-O Estado imperial impunha a discriminação religiosa sob diversas formas. A Constituição de 1824, que vigorou durante os dois reinados, determinava em seu artigo 5º que às religiões diferentes da Igreja Católica Apostólica Romana seria permitido unicamente o culto doméstico, "sem forma alguma exterior do Templo". O já mencionado decreto de 26 de março de 1824 excluía do rol dos habilitados ao cargo de deputado "os que não professassem a religião do Estado".
(Ver novamente Soares de Souza, p. 196).
4-O governo regencial fez aprovar em 7 de novembro de 1831 uma lei que declarava livres, a partir daquela data, os escravos que fossem trazidos do exterior, estabelecendo que os introdutores, além de incorrer nas penas já previstas pelo Código Criminal para os escravizadores de pessoas livres, deveriam financiar a "reexportação" de sua carga humana para a África. Todavia, a legislação foi sistematicamente desrespeitada pelas autoridades administrativas e judiciárias de todos os níveis, e o tráfico negreiro, depois de experimentar algum recuo, cresceu sensivelmente a partir de 1837, quando conservadores ditos "regressistas" passaram a controlar o governo central. Jamais saberemos com exatidão a quantidade dos africanos trazidos para o Brasil numa violação das próprias regras formais do Estado escravista, mas o pesquisador David Eltis estimou seu total em 718.000 entre 1831 e 1855, dos quais a maioria foi embarcada na região Congo-Angola. Contrariando o estúpido argumento dos que tentam isentar os brasileiros destes crimes atribuindo uma culpa exclusiva aos portugueses, o historiador Roquinaldo do Amaral informa que 59% dos navios negreiros identificados que foram apreendidos na costa de Angola entre 1845 e 1850 eram brasileiros.
(Ver Roquinaldo do Amaral. Brasil e Angola no tráfico ilegal de escravos, 1830-1860. In: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul/Selma Pantoja e José Flávio Sombra Saraiva (orgs.). Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999, p. 143-144)
5-O Senado imperial era vitalício. Levando-se em conta a baixa expectativa de vida da época, notamos que um cidadão eleito para aquela Casa poderia continuar no parlamento mesmo depois de terem morrido na maior parte seus poucos eleitores. João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu foi senador por Alagoas de 1857 a 1889; José Inácio Silveira da Mota representou Goiás de 1855 a 1889; Pedro de Araújo Lima ocupou uma vaga por Pernambuco entre 1837 e 1870. Além disto, os senadores eram escolhidos pelo imperador a partir de uma lista tríplice dos mais votados. Para ficarmos em um único exemplo de arbítrio, quando o romancista José de Alencar, então ministro da Justiça, concorreu ao Senado por sua província natal, o Ceará, vencendo a eleição, D. Pedro II, que desaprovara sua candidatura, nomeou senador o segundo colocado, Domingos José Nogueira Jaguaribe, em 27 de abril de 1870.
(Ver Vicente Tapajós. Organização política e administrativa do Império. Brasília: FUNCEP, 1984, p. 154)
6-Serviços públicos básicos, como o abastecimento de água encanada e a rede de esgotos, eram inteiramente negligenciados na monarquia e virtualmente inexistiam na metade do século XIX em pleno Rio de Janeiro. O sistema de esgotos da capital do Império só foi inaugurado em 1862 e, embora mais tarde este "privilégio" tenha sido estendido a outras cidades, como São Paulo, Recife, Manaus e Salvador, a água encanada permaneceu como um luxo acessível a pouquíssimas pessoas.
(Cf. Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 291 a 295)
7-Os impostos estabelecidos sobre o comércio de exportação e importação representavam uma fonte vital de receita para o Estado Imperial. Isto não impediu que o setor portuário fosse dominado pela precariedade e pelo improviso, conforme percebemos nestas linhas de Cezar Honorato:
"O porto no correr do Império, é bom que se diga, não passava de um conjunto desarticulado e mal construído de trapiches de madeira, onde encostavam as lanchas que eram carregadas para levar os produtos até o navio que ficava fundeado no largo. Cada um destes trapiches tinha seu dono, que, normalmente, tinha um grupo de escravos que transportava o produto desde o armazém até o pontal ou trapiche. Os chamados armazéns eram, normalmente, galpões de madeira com piso de chão, sem segurança e insalubres. No caso do Rio de Janeiro, que após 1850 detinha a hegemonia quase absoluta das exportações brasileiras, surgiram dificuldades no embarque e desembarque de mercadorias, mas a própria geografia da cidade facilitava o surgimento de novos trapiches e armazéns, mascarando o colapso do setor".
(Ver Cezar Teixeira Honorato. O Estado imperial e a modernização portuária. In: História Econômica da Independência e do Império/orgs. Tamás Szmrecsányi e José Roberto do Amaral Lapa. São Paulo: Hucitec; ABPHE; EdUSP; Imprensa Oficial, 2002, p. 167)
8-As políticas públicas de Educação no Império foram catastróficas. O historiador monarquista José Murilo de Carvalho admite, com base nos dados do Censo Nacional de 1872, que dos jovens entre seis e quinze anos apenas 16,85% frequentavam a escola naquele ano. Menos de doze mil estavam matriculados em cursos secundários, quando o total da população livre se aproximava de 8,5 milhões. O ensino superior ficou limitado a um punhado de instituições, como as escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, as faculdades de Direito de Olinda-Recife e São Paulo, as de Farmácia e de Engenharia de Minas e a Escola Militar do Rio Grande do Sul.
(Ver José Murilo de Carvalho. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 80 a 82)
9-Autoridades de todos os níveis lançavam mão do recrutamento como castigo aplicado aos pobres que contrariavam seus interesses. Claudete Dias descreve que no Piauí a arraia-miúda que formava a massa de votantes dos opositores do barão da Parnaíba, no fim do Período Regencial, estava sujeita à captura e remessa em navios mercantes para o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, em condições tais que um escritor local definiu estes destinos como "os matadouros do Sul". Durante a Guerra do Paraguai, quando escassearam os voluntários, o governo central empreendeu uma verdadeira caçada humana, levando muitos indivíduos a se declararem adeptos do Partido Liberal, então no poder, para escapar do envio aos campos de batalha. Francisco Doratioto descobriu que em São Paulo, somente em 1865, 168 homens pagaram a elevada quantia de 600$000 (seiscentos mil-réis) por uma dispensa do serviço militar.
(Ver Claudete Maria Miranda Dias. Balaios e bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina: Instituto Dom Barreto, 2002, p. 124 a 127 e Francisco Doratioto. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 265-265)
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